Não é de hoje que percebemos, ainda que sem compreender completamente, que a literatura americana dos super-heróis tem sérias — porém veladas — ambiguidades morais.
Antes de desenvolver esse tema, é importante ter em mente uma teoria de base aqui: tudo que é dito ou expresso, revela também o não-dito e o não expresso. O que isso significa? É fácil perceber, por exemplo, que uma pessoa que se esforça para se mostrar boa, esconde, ignora ou reprime o mal em si mesma. Muitas vezes, o excesso de confiança mostra grande insegurança num nível mais profundo. Você já viu isso, não é mesmo? Pois bem:
todo dito carrega consigo o não-dito.
Além disso, também carrega intencionalidade. Esse fato também é perceptível naquele tipo de experiência em que você se encontra numa discussão com alguém muito cordial e educado, mas percebe que a pessoa está sendo, na verdade, hostil. A ironia e o sarcasmo são exemplos disso: e quanto mais sutis, parecem carregar mais hostilidade. Também é fácil perceber isso naquelas pessoas que, apesar de parecerem brutais, estão sendo genuínas e humanas. Todas essas questões são de fácil percepção quando se compreende a sutileza da intencionalidade, da carga afetiva (ou, como diria Heidegger — da tonalidade afetiva) do contexto, da relação e do que é expresso ali naquele momento.
Mas o que isso tem a ver com super-heróis americanos?
Na verdade, poderíamos dizer que há uma classe de pessoas que se encaixam nesse pacote. Os super-heróis foram colocados aqui a título didático. Mas o que falaremos aqui hoje é de um tipo que aparece em diversas roupagens, inclusive em teorias das mais, aparentemente, humanizadas. Estamos falando daquela mentalidade que se pretende direcionada ao ideal.
É louvável que nos direcionemos a ideais humanos. Afinal, buscamos a melhoria (ou, pressupõe-se que seria uma boa buscar!). O que acontece frequentemente, no entanto, é um falseamento da realidade. Explico:
O problema da busca pelo ideal
Na busca pelo ideal, muitas vezes nos confundimos com ele, nos envergonhamos do não-ideal que somos, e nos escondemos, criando assim uma máscara ideal que mostra para o mundo um caminho já trilhado, e não o caminho a trilhar. Todos estamos no caminho trilhado e a trilhar. Mas certamente a maioria de nós está longe de tê-lo trilhado plenamente.
Ainda parece confuso? O super-herói é uma demonstração de caminho trilhado, de superioridade e excelência, de impecabilidade moral, física, psicológica e emocional. Ou seja: poderíamos facilmente atribuí-lo a uma máquina. Enquanto olhamos para um super-herói como ideal que nos guia pelo caminho, está tudo bem. (lembre-se, troque o termo “super-herói” por qualquer outro dessa classe de pessoas e você entenderá facilmente. Isso aparece em moralismos religiosos, práticas de vida, causas e, até mesmo, em abordagens da Medicina e da Psicologia! Quem diria, não é mesmo?!)
O problema surge quando, em vez de olhar para o super-herói como um guia, um farol para o nosso caminho, acreditamos que saber o que faz um indivíduo ser um super-herói é o suficiente para nos tornar um, bastando apenas apresentar o melhor de nós e esconder (se possível até de nós mesmos) nossas falhas de caráter, nossas fraquezas e imoralidades. Quando isso acontece, o que temos é um indivíduo o qual o dito e expresso não confere com o que está não-dito e não expresso. Percebemos intencionalidade distinta de sua atitude e sentimos isso como falsidade. Entretanto, se não somos capazes de perceber isso naquele momento, nos sentimos inferiorizados em nossas próprias fraquezas e imoralidades. E, para contornar esse óbvio ataque a nossa longa e sofrida caminhada, nós acabamos colocando também nossas máscaras. Assim, nos tornamos aceitos, pertencendo ao grupo sem maiores embates. Mas a que custo?
O grande problema aqui me parece o custo realmente. Manipulamos sutilmente a realidade para pertencer, mas deixamos de pertencer a nós mesmos e nos aceitar enquanto seres em construção. E se nos espelhamos apenas em construções já prontas, idealizadas e não compatíveis com a realidade humana, o que conseguimos é apenas uma cisão ainda maior de nossas polaridades, uma rejeição de partes importantes de nós que precisam ser integradas, compreendidas e postas à serviço, à sua maneira e da forma que for possível.
Pensadores em prol da integração
Há muitos anos esse assunto me intriga. E também intriga muitos pensadores. Um dos que muito me chamam atenção é o autor cristão Anselm Grün que, em seu livro Para que tua vida Respire Liberdade trata da negação que o ser humano tem de suas próprias impurezas, e da frequente ritualização das práticas de purificação que mostram o tamanho de nossa neurose quando se trata disso.
Queremos ser perfeitos. Não aceitamos o imperfeito. Em nós, inclusive. Algo que aparece muito também em Vigiar e Punir, um livro clássico de Michel Foucault. Se me mostro imperfeito, o outro poderia me atacar e zombar de mim, logo preciso me proteger. Que engodo! A autora Brené Brown, em seu livro A Coragem de ser Imperfeito também é uma que de maneira fantástica expõe nossa rejeição da sombra humana e como isso nos tem adoentado enquanto sociedade.
O famoso Milan Kundera, em seu livro A Insustentável Leveza do Ser elabora uma interessante metáfora a esse respeito quando comenta sobre as estruturas dos sanitários em nossa sociedade, que esconde nossas “merdas” através de tubos escondidos nas paredes, levando para longe tudo que é feio e sujo.
Enquanto rejeitamos o grotesco, o feio, o sujo, e inclusive a própria morte e fragilidade do ser humano, estamos condenados a nos deparar com eles a todo instante e odiá-los, e fingir que não existem e deixar que tomem formas de hipocrisia, desamor, desumanidade e, pior, toma formas de má distribuição de renda, autoritarismos religiosos, guerras frias, transtornos mentais e psicoses, exploração, imagens distorcidas de heroísmo e, talvez, o pior de todos: o coaching!
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